Pedro, O Grande: o imperador que abriu as comportas da Europa e inundou o psiquismo russo.
- alexandremorillas65

- 21 de nov.
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Atualizado: 24 de nov.
O legado psíquico de Dostoiévski para Freud.
A psicanálise freudiana, fruto da civilização ocidental, apresentou o mapa por onde percorre os impulsos humanos, que são representações instintuais, forças abstratas que movem o organismo e se organizam conforme as pressões do meio circundante. Podemos compreender que a repressão psíquica é uma poderosa ferramenta de domesticação que sufocou a espontaneidade emocional que podemos ler em obras que ilustram os séculos XV e XVI como “Tarás Bulba" e "Andrei Rublev" que revelam tipos humanos ainda em posse de seus instintos, mesmo sob o jugo do cristianismo ortodoxo. A reforma de Pedro pode ser compreendida como a peste oriunda dos confins da Ásia sonhada por Raskólnikov, e que gradativamente chegou à Rússia com a criação de um exército profissional nos moldes europeus, a abertura de escolas militares e academias inspiradas no modelo sueco, a fundação da Academia de Ciências de São Petersburgo, a incursão da disciplina rígida de influência prussiana, o uso de tecnologia naval trazida dos ingleses e holandeses incentivando o comércio marítimo, e criando também as frotas do Báltico e do Mar Cáspio, fábricas de munição e manufaturas, a modernização da agricultura, fora o contrato de artistas italianos que adornaram Moscou e São Petersburgo e a introdução do idioma francês entre as castas abastadas. Esses elementos foram suficientes para moldar não apenas a conduta da população russa, mas principalmente provocar uma alteração no mapa psíquico coletivo. O fenômeno pode ser observado no grau de sofrimento do escritor Fiódor Dostoiévski, que conhecemos através de sua obra artística e de fontes biográficas, que permitem um estudo apurado do caminho que os impulsos, sob a influência da repressora reforma, geraram sobre o organismo, fortalecendo a censura psíquica e resultando em quadros psicopatológicos que transportados à arte literária, foi caldo de cultura para o exame das profundezas humanas. Dostoiévski é parte de um povo que trazia em seu bojo a estrutura intacta que permitia maior liberdade das satisfações instintivas, assim como a pureza de alma muito comum entre os iuródivis que há muito a civilização europeia “extinguiu” e assim, a Rússia pré-petrina sofreu o impacto intenso que o europeu provavelmente experienciou antes do estabelecimento da configuração psíquica entre minoicos e micênicos. Mas como se deu a infecta “praga asiática” é uma questão que remete ao surgimento da linguagem defendido por Wilhelm Von Humboldt, e “que não admite explicações¹”. Esse arquétipo não é sequer explicado em “O sonho de um homem ridículo”, porque faz parte do mistério divino da humanidade, da mesma maneira como Freud não explica a estrutura interna que produz as imagens dos sonhos sob a influência dos estímulos sensoriais externos e internos. E essa incógnita que vive dentro de cada ser humano é a que adaptou o psiquismo do povo russo, intensificou a censura que baniu para as profundezas a natureza campestre que se manifestava sob a égide de um cristianismo não punitivo que permitia toda sorte de condutas violentas por parte dos homens que mantinham suas mulheres castas, que escravizavam pessoas, que lavavam a honra com sangue, que resolviam as querelas no fio do sabre, que permitiam ainda mais a liberação dos impulsos no consumo do álcool, que sequestravam mulheres no ápice de suas paixões e que também eram morais a seu modo num nível, preservando a existência da espécie reforçando a cultura e identidade da comunidade. Grande parte dessa natureza foi reprimida dando lugar a uma europeizante colonização psicológica, que a maneira aguda de reagir de Dostoiévski às dores da punição, remontam quadros que podemos ler em “Totem e Tabu” em menor grau se comparados aos casos documentados dos povos da Australásia, cuja autopunição psíquica levava em alguns casos, à morte súbita². Mas a dualidade dor e redenção que Dostoiévski carrega na tinta apresentam a capacidade deste autor que explora características de uma repressão sedimentada muitos séculos antes na Europa de uma forma mais vívida onde os impulsos intensos ainda se deixavam revelar e que o escritor - ao contrário de Freud, que necessitou descer às profundezas - , passou a viver o inconsciente enquanto observava com agudeza bêbados, camponeses violentos, desesperados, indivíduos desprovidos de culpa e almas divididas entre dois mundos antagônicos, o nativo e o colonizador. Pedro, de certa forma, deu à Europa um dos maiores tesouros surgidos do conflito psíquico entre os povos do Oriente e Ocidente, que foi a capacidade artística de um escritor que pôde entregar a Sigmund Freud a chave dos segredos ocultos da consciência a uma sociedade que ainda hoje luta para despertar a chama viva que a distancia de Deus e a treva que a aproxima do Diabo, para que um dia se unam e tragam quiçá, um porvir de paz e união entre os povos da Terra. Para isso, Dostoiévski ainda é muito necessário³.
HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre la diversidad de la estructura del lenguaje humano y su influencia sobre el desarrollo espiritual de la humanidad. Barcelona: Anthropos,1990. pp. 27-28.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 11: Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.76.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O paradoxalista. In: BIANCHI, Fátima (org.). Contos reunidos. Tradução de Priscila Marques et al. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 347.
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