A estrutura psíquica na composição de Dostoiévski: a depressão na literatura russa.
- alexandremorillas65

- 17 de out.
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Atualizado: 23 de out.
O quadro psicológico de Pechorin e a psicopatologia no cenário literário russo.
Muito antes de a depressão ser reconhecida como uma patologia, os romancistas russos estabeleceram de forma criteriosa a análise do indivíduo inserido no corpo social, definindo a caracterologia humana que enriquecia a crítica literária, abordando a vida interior das personagens em todas as camadas socioeconômicas aprofundando um psicologismo que registrou o traço de caráter de uma nação mista, que carregava o arquétipo do cristianismo ortodoxo, da Rússia rural e dos valores ocidentais que sorrateiramente adentravam o país. Um caráter psicológico que em parte, antecipa a gama de personagens criadas por Dostoiévski e define um traço que ficou conhecido na Rússia como "homem supérfluo", termo cunhado pelo escritor Ivan Turguêniev, contemporâneo de Dostoiévski e também de Gontcharóv, ganha notoriedade na obra “O Herói do Nosso Tempo”, escrita pelo romancista e poeta Mikhail Lérmontov. A personagem Grigori Alieksândrovitch Pechorin tem sua vida psicológica narrada em diferentes histórias, que não se interligam cronologicamente, revelando aspectos de um homem tomado pelo tédio, incapaz de amar, que perdia as expectativas sobre suas conquistas profissionais, que se dizia desacreditado na infância e que acabou criando uma defesa contra as mulheres que manipulava e depois as descartava, um sujeito obscuro de difícil definição por esconder muito bem suas dores e não externalizar fraquezas. Em seus diários, aparecem as confissões de seus medos, como o sentimento de inveja, o medo do desamparo, a infelicidade de saber que aqueles que considerava ignorantes, desfrutavam das mesmas condições e regalias que ele, um homem vivido, frequentador da alta sociedade, conhecedor da vida alheia, num nível profundo, após aprender a ler desde a infância, o caráter daqueles que o compreenderam errado, em suma, um sujeito que se fechou contra todos e os ironizou em desforra. Esse tipo se repete em "Diário de um homem supérfluo", "Rúdin", ambos de Turguêniev, e também nos traços de Raskónikov e Stavróguin em Dostoiévski, cuja confissão deste último aparenta ser uma versão das confissões de Pechorin, mas num nível muito mais profundo em termos psicológicos. Dostoiévski aprofundou seu conhecimento em caracterologia quando fez de seu degredo um laboratório onde analisou diretamente os companheiros condenados, os carcereiros e também gente do povo com o qual passou a conviver após o cumprimento da pena em regime fechado, chegando a conhecê-los de perto desvendando o que de mais íntimo, não só nas almas desgraçadas jogadas a qualquer tipo de sorte, mas também do habitante rural, distante da europeização equivocada de seus colegas de plêiades, sobre a real situação do povo russo. O sadismo e o masoquismo foram duas características antagônicas percebidas em diferentes pessoas, e também no mesmo indivíduo, e a maneira como grafou em seus escritos as expressões faciais e os tons da voz traduzidos pelo narrador revolucionaram a psicologia caracterológica, refletindo-se em especial nos trabalhos de Wilhelm Stekel, Erich Fromm e Wilhelm Reich. Por outro lado, o caminho que a literatura científica percorreu no estudo de uma caracterologia funcional, dividindo o caráter em categorias que privilegiavam separadamente a constituição orgânica, individual e social¹ em relação à psicologia da literatura oferecida pelos romancistas, distancia-se do indivíduo, e a procura pelos fatores determinantes do caráter acaba sendo direcionada para lugares errados. Freud, em seu estudo sobre a psicologia de massa, observou alterações psíquicas que levam consequentemente a alteração do caráter quando sujeito às pressões da massa. Reich procurou nos moldes funcionais estabelecer categorias caracterológicas aplicadas à psicanálise, quando atribuiu ao meio social e a instituição familiar o núcleo da formação do caráter como sintoma neurótico. Erich Fromm, a meu ver, é quem sintetiza melhor as observações caracterológicas reichianas, se aproximando mais da psicologia literária e oferecendo bons exemplos que permitem um olhar mais atento afastando o pesquisador da ótica tecnicista. Mas o conhecimento do caráter através dos contos e romances fecha junto às pesquisas científicas um ponto fundamental sobre questões inconscientes profundas, quando C.G. Jung apresenta a tipologia polarizada na introversão e extroversão, as mudanças na disposição interna decorrentes de fatores que impactam os seres humanos no decorrer da vida, fazendo-os migrar de uma para a outra como no exemplo narrado sobre Tertuliano e Orígenes². Jung traz mais do que um mero esquema ordinário de tipos psicológicos, mas mudanças significativas que determinam uma tipologia predominante em parte sobre a formação do caráter e sua evolução. Olhando por esse viés, as mudanças a que foram expostas a consciência coletiva russa na transição de um sistema feudal para o capitalismo, aparecem como um registro onde Pechorin se torna o elo arquetípico que define em parte o caráter de certas personagens de Dostoiévski que vivem no extremo do limite de seus conflitos decorrentes das reações que se munem dos valores, que em suas almas, travam uma luta entre Ocidente e Oriente.
MUELLER, Fernand-Lucien. História da Psicologia. Tradução de Almir de Oliveira Aguiar, J.B. Damasco Penna, Lólio Lorenço de Oliveira e Maria Aparecida Blandy. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. p. 352.
2. JUNG, C.G. Tipos Psicológicos. Tradução de Alvaro Cabral: Guanabara, 1987.p.33.
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