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Raskólnikov e Svidrigáilov: os sonhos artísticos de Dostoiévski.

  • Foto do escritor: alexandremorillas65
    alexandremorillas65
  • 11 de out.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 12 de out.


Os sonhos na psicanálise e na literatura dostoievskiana.


As obras de Dostoiévski, e vou me ater, em especial, aos sonhos artísticos em "Crime e Castigo¹ ", apresentam os elementos composicionais básicos que Freud ilustra em "A Interpretação dos Sonhos" (1900), mas este artigo dará destaque às nuances entre os sonhos literários do autor russo e os sonhos reais, e não às interpretações e seus possíveis significados. A literatura consiste em uma construção narrativa para inserir o leitor ao universo da obra para que este contextualize a interpretação que fará das impressões que a composição do autor transporta para seu espírito, e faça algum juízo disso. O caso da interpretação literária dos fenômenos oníricos não difere dos que a psicanálise analisa, pelo fato de a narrativa ser transposta da arte para o psiquismo do leitor, que a reproduz de acordo com a natureza da linguagem. Em outras palavras, a criação artística do autor, produto de processamentos internos que interligam conceitos, convertem-se em elementos psicológicos, em imagens mentais particulares que fazem algum sentido para outra pessoa quando passa a fazer uso da linguagem no ato de leitura. Por outro lado, a interpretação dos sonhos reais feita através da psicanálise, necessita de certo rigor que distancia o analista do artista. Os sonhos reais não são narrativas lineares e muitas vezes quando nos lembramos de sonhos com pessoas falando, não conseguimos lembrar do encadeamento das frases, a ordem contextual do surgimento e fim do sonho não é clara, ocorre a fusão de uma pessoa com outra, fora outras imagens absurdas não condizentes com a realidade quando despertamos e as imagens se encontram ainda frescas na memória. Ao se isentar do mundo externo, o psiquismo dispara automaticamente imagens geradas por processos transformacionais desconhecidos junto com algum componente que o distrai, não mais permitindo a distinção entre a realidade e o sonho. Essas características não podem ser isoladas, se interpretarmos os sonhos da arte literária ao pé da letra. O sonho de Raskónikov com a égua sendo surrada por um bando de bêbados é um exemplo. Ocorrem discursos vívidos que podem ser sonhados na vida real, mas a cautela é necessária para separar o que é coerente nesse sonho quando o sintetizamos mentalmente e damos a ele uma perspectiva crítica, após o subentendimento semântico que o psiquismo produz ao converter a narrativa em processos condensatórios que ocorrem nos sonhos reais, da interpretação alterada que fazemos quando evocamos os fragmentos conservados na memória e começamos a contar o que se passou durante o sono. Também sabemos que os sonhos podem ocorrer em questão de segundos e termos a impressão de que durou quatro horas. A atemporalidade já foi constatada em observações científicas e até a própria pessoa que sonha pode certificar-se desse fenômeno quando acorda e olha para o relógio - no caso das personagens dostoievskianas, quando olham para a vela que mal começou a derreter. Sabe-se lá em qual ordem a mente comprimiu esse espaço-tempo onde tudo pode acontecer! Dostoiévski conhecia bem os passos do processo do sono que leva ao sonho, ao devaneio e soube transportar para as letras de maneira que o leitor desatento escorregue e passe a "sonhar” junto com as personagens. Podemos constatar a perspicácia de Dostoiévski na sequência dos três sonhos de Svidrigáilov, antes do fatídico episódio. O primeiro sonho o faz se enroscar com um rato em sua cama numa luta em vão para pegar o animal que lhe roça os dedos dos pés e vai parar em sua barriga, parando nas costas por dentro da camisa, o que poderia estar relacionado a um estímulo sensorial externo, devido ao estado deplorável do quarto onde se hospedou, misturando-se às questões inconscientes que já fervilhavam na alma provocando nele um esforço descomunal para voltar a acordar. Em seguida, ao pegar no sono novamente, a narrativa relata flores que começaram a povoar a mente e, na sequência, numa ordem linear, o sonhante encontra-se num cenário paradisíaco em um dia claro e festivo, onde sobe a escada de uma bela casa de campo, enfeitada com um tapete e cercada de flores em vasos chineses, fora outros detalhes envolvendo a botânica e um domínio no conhecimento (do autor) dos detalhes, se depara com um caixão no meio de um enorme salão, onde havia mais flores por toda parte e, onde jazia uma menina, mesas forradas com cortinas de cetim branco... Sem entrar em detalhes sobre o desfecho, o que se observa é que Dostoiévski soube transpor para a literatura uma ordem linear que não fere o entendimento do leitor e que podemos compreender se tratar de um rápido lampejo na memória onde a sequência do sonho, ornado de belas características, desenvolve-se de maneira que geralmente desvia-se do sentido oculto. Os detalhes aparecem de uma maneira impressionante o que ainda desafia a mente científica acerca da capacidade elaborativa, e também na ordem em que aparecem nos resíduos mnêmicos. Mais uma vez, voltando a dormir, sonha com uma menina que passa as impressões mais bizarras e tomado de um terror noturno, desperta. Esses sonhos artificiais² respeitam a análise psicanalítica somente se soubermos converter para a realidade a desordem típica que as pessoas comumente sonham e como os relatam em análise, ou contam para alguém. Dostoiévski conseguiu desviar o leitor dos fracassos que uma interpretação simbólica do sonho oferece, com seus detalhes e coerência com que a mente em estado de vigília opera, com uma narrativa que expressa com clareza a “incoerência” que encobre os conteúdos latentes que se mesclam ao estado de espírito das personagens. O que Dostoiévski conseguiu em sua construção artística foi evitar os sonhos perfeitamente corretos que o mundo literário costumava apresentar para fins de uma interpretação óbvia, que uma natureza como a mental jamais respeitaria.


  1. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001.


  1. FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 4: A Interpretação dos sonhos (1900). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p.128.

 

 
 
 

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