top of page
Buscar

Gógol, Dostoiévski e Freud: a psicanálise de uma nação em transição.

  • Foto do escritor: alexandremorillas65
    alexandremorillas65
  • 7 de nov.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 17 de nov.


A literatura russa no processo do avanço da psicanálise.


O artigo que segue é um trecho extraído de minha tese pessoal sobre filosofia da ciência e aborda aspectos importantes sobre as características que Nikolai Gógol pincelou em “Tarás Bulba” sobre os cossacos ucranianos, povo tribal consolidado no século XV com perfil militar num período em que o Estado russo ainda se encontrava em formação em torno de Moscou, conhecido como o Grão-Ducado de Moscóvia. Pelo fato de ser uma potência separada da Lituânia e da Polônia as quais detinham o controle sobre a Ucrânia, as características psicológicas dos cossacos são pertinentes para a compreensão do caráter dos russos que Gógol, Karamzin, Púchkin, Lérmontov e Dostoiévski desenvolveram em suas obras, principalmente neste último em que o arquétipo do selvagem das estepes fervilha em personagens como o tenente Iliá Pietróvitch de “Crime e castigo” e nos violentos Pável e Dmitri em “Os irmãos Karamázov”.  Além do retrato gogoliano, um documento de extrema importância, que pode nos oferecer alguma pista, é o livro de Voltaire intitulado “Histoire de I´Empire russe (História do império russo)”. A Rússia, sendo um território em transição entre Europa e Ásia, apresentava uma diversidade de tribos espalhadas nas mais remotas áreas a leste e ao norte, e na parte meridional, região conhecida como “Cítia”, sujeita a todo tipo de ocupações desde turcos e eslavos orientais, até os cimérios e sármatas, que passaram parte do substrato étnico e cultural aos cossacos de origem turca e eslava. Tal composição, formou povoados em que alguns deles não toleravam o convívio de mulheres que permaneciam isoladas em ilhas fluviais e não formavam famílias, pois o matrimônio não existia. O incesto era comum, e a relação sexual era permitida entre o pai e as filhas e também entre irmãs e irmãos. Os filhos gerados dessas relações eram deixados com as mães¹.  Outra tribo que merece destaque e que talvez apresente um dos pilares da constituição psicológica que aparecem na temática dostoievskiana sobre a permissividade na ausência de Deus, é a que tinha no caos, a ordem estabelecida. Esses habitantes da província de Kamtschatka, a mais oriental do território russo, eram adoradores de uma entidade superior nomeada Kouthou. Dedicavam-lhe um grande ritual de purificação, mas que por motivos obscuros não o temiam, não o amavam e nem o odiavam; e tinham como permissão a satisfação das paixões, além de estarem proibidos de salvar a vida do próximo quando este se encontrava em perigo, o que os distinguia dos homens de tribos diversas que apresentavam o instinto de preservação nos momentos de risco². Esses dois exemplos são suficientes o bastante para avaliarmos os traços da herança psicossocial da população russa, já que datam de período anterior à reforma de Pedro. A liberdade sexual e a permissão ilimitada da satisfação das paixões humanas, características que ainda não tinham se apagado na alma do homem russo do século XIX recém saído de uma sociedade feudal e escravocrata, nos remete a enxergarmos a relação que mantinham com a cultura e os valores vindos do Ocidente em choque com os valores nativos, como um valioso meio que possibilitava a capacidade crítica em penetrar as profundezas humanas de uma forma mais crua e direta do que os europeus já haviam assimilados. Não era tão simples aos ocidentais do século XIX se libertarem da caverna platônica se comparados aos russos que começavam a adentrá-la. O drama das personagens de Dostoiévski acerca do livre-arbítrio, do medo à liberdade, do incesto e da revolução sexual, temas que aparecem no diálogo entre Lújin e Liebeziátnikov em “Crime e Castigo”, revela o estágio gradual de ocidentalização datado de quase um século antes de Púchkin, retratado de forma intensa por Dostoiévski pela simplicidade das raizes que pôde analisar na Sibéria, ainda em camadas explícitas não vencidas por completo pela repressão, permitindo maior reflexão sobre as características naturais humanas, assunto considerado tabu muito mais tarde ainda no círculo médico de Freud. A análise do caráter desenvolvida por Gógol, os minuciosos detalhes no imaginário cotidiano da população russa descritos por Tolstói, o mapa da depressão delineado por Gontcharov em “Oblómov”, são alguns exemplos da capacidade desses artistas que aparentemente apresentavam uma naturalidade bastante simples na abordagem psicológica dos temas escolhidos , se comparados às exceções  dos grandes ocidentais  como Balzac, Hugo e também, a Shakespeare, Cervantes e Dante, artistas que provavelmente tiveram de superar inúmeras  barreiras  de preconceitos  religiosos e culturais  para o alcance de seus êxitos, salvo exceções que podem ser questionadas nos casos dos saltos para frente no processo evolutivo descritos por Alfred Russel Wallace, que produz tipos humanos dotados de potencial acima da média. O período de Gógol e de Dostoiévski já sob enorme pressão ocidental revela uma sociedade que se encontrava sob forte influência da repressão psíquica que permitiu a ambos os escritores definirem os rumos que mais tarde seriam continuados por Sigmund Freud. A psicanálise encontrou um fértil terreno que permitiu uma revolucionária maneira de explorar a mente humana pelo viés científico nunca antes abordado pela medicina, trazendo elementos ocultos que não eram tão velados nos recortes que podemos ler em “Tarás Bulba”, poupadas as descrições do autor sobre a sexualidade que Freud em seus três ensaios sobre o tema, e também em “Totem e Tabu”, pôde explorar abertamente. A revelação de que forças ocultas governam a vontade consciente, não foi aceita pela sociedade europeia, assim como a sociedade russa não aceitava o retrato que Gógol fazia em suas peças teatrais, que tiravam da zona de conforto todos aqueles que se julgavam senhores de si e acima dos que não poderiam atingir suas posições sociais. Eis a matriz que Wilhelm Reich denominou como patriarcado, cujo foco da neurose  era a família, clã modernizado que encerrava o modo bárbaro de vida sob a capa dos bons costumes.


  1. VOLTAIRE. Histoire de I´Empire russe. In: Oeuvres completes de Voltaire. Tome XXI. Paris: Chez Antoine-Augustin Renouard. 1819.p.39.


  1. Ibidem, pp.50-51.

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Amor e ódio na obra de Dostoiévski.

A ambivalência de sentimentos antes de Freud. A conturbada vida dos apaixonados saídos das páginas de Dostoiévski contém um rico material psicológico. O estilo realista do artista é o laboratório sobr

 
 
 

Comentários


Âncora 1
bottom of page