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As heroínas de Dostoiévski – um paralelo com “O Caso Dora”.

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    alexandremorillas65
  • há 2 dias
  • 6 min de leitura

Atualizado: há 2 dias

As questões sexuais na obra dostoievskiana.


Este artigo promove a continuação de “Amor e ódio na obra de Dostoiévski”, dando ênfase à questão da sexualidade na literatura dostoievskiana, principalmente em torno de duas personagens que coroam o romance russo que determinou, posteriormente, as investigações psíquicas iniciadas por Josef Breuer e Sigmund Freud. Cito aqui novamente Niétotchka Niezvânova e Nastácia Fillípovna. Tais heroínas, quanto às outras conhecidas dos leitores, mexeram com o imaginário feminino a ponto de anteciparem as curas pela conversa, iniciadas em Viena.

Nikolai Leskov abre o seu “A propósito de A Sonata a Kreutzer”, onde uma desconhecida dama, que não gostaria de ser identificada, o procura no meio da noite — uma dentre muitas que procuravam os escritores para pedirem conselhos sobre suas experiências literárias — leia-se, sobre suas questões sexuais. Esta mesma dama, que também outrora havia procurado Dostoiévski, relatou acerca de sua infidelidade conjugal e que carregava um grande peso na consciência, pelo fato de o marido ser uma pessoa boa e maravilhosa¹.

Os problemas relacionados à sexualidade, que a literatura, apesar de ser mais abrangente e profunda sobre o não dito, eram evidentemente os mesmos que ocuparam o jovem Freud em seus atendimentos ainda como um médico neurologista. Freud percebeu que os sintomas físicos que pacientes mulheres apresentavam desapareciam por um tempo e, inesperadamente, voltavam. Para melhor explanação acerca do fenômeno, sigamos pela observação direta, onde o leitor, sem a necessidade de uma “partitura científica”, pode acompanhar os segredos da alma humana que essas personagens revelam através da veia artística de Dostoiévski, junto ao clássico “O Caso Dora”.

Este famoso caso clínico, apesar de fragmentário, por ter durado apenas três meses, foi o suficiente para o entendimento geral dos obstáculos que a libido encontra em seu curso natural. Para os versados na metodologia psicanalítica, as questões apresentadas pela paciente remontam à triangulação primária determinante do incesto. No caso Dora, a criança, a princípio, se encontra na fase pré-genital, e sua primeira troca amorosa ocorre com a mãe, onde a libido se liga ao componente homossexual que prepara o organismo ao desprendimento futuro, que se destina às partes do corpo onde as propriedades erógenas passam a delimitar certas zonas, podendo ser qualquer uma que a estimule, geralmente sendo os próprios lábios ou partes da pele, onde o ato de sugar, ligado à fase oral, seja satisfeito, representando os instintos parciais ligados às partes nesse período do desenvolvimento, tido como autoerótico.

Na prática, o leitor de Dostoiévski passa a compreender que tanto Niétotchka quanto Nastácia Fillípovna tiveram naturalmente seus instintos satisfeitos enquanto ligadas às suas mães, passando pelo desprendimento e sucumbindo ao período de latência, que é uma fase onde aparentemente a libido dormita, até retornar na puberdade, onde se fixa aos genitais, preparando o organismo para a vida adulta. Mas o que temos para darmos início a uma investigação mais apurada no sentido literário é o caso de Niétotchka como duplo das demais heroínas dostoievskianas, incluindo também, como um elemento enfático, a personagem Nelly, de “Humilhados e Ofendidos”, como lacuna preenchida que remonta à transição libidinal de Niétotchka, entre o que ocorre após o fim da segunda e antes da terceira parte do romance. Ou seja, provavelmente Dostoiévski teria desenvolvido esse período da vida da pequena “Ana”, não fosse o projeto ceifado com o episódio de sua prisão em 1849.


O Caso Dora.


Freud analisou o caso Dora, nome fictício de Ida Bauer, dissertando o caso clínico e sua conclusão através de dois sonhos. A análise dos sonhos não interessa no sentido técnico, mas apenas em seus conteúdos, que revelam os desdobramentos relacionados à triangulação primária. Apesar de Freud incluir um elemento substituto do pai como causa principal do caso clínico, este passou a representar aquilo que remonta aos primórdios da sexualidade: a fase edípica — posterior, no caso da menina, intensificada geralmente na puberdade, em sua ligação afetiva com o pai.

Em um breve resumo, esse caso envolveu, além de Dora, seu pai, sua mãe, que apenas é mencionada, e um casal — o Sr. e a Sra. K. — que acabam formando uma triangulação secundária, despertando em Dora os sintomas histéricos. O pai de Dora teve uma relação extraconjugal com a Sra. K., e esta já se encontrava resolvida em relação ao marido, porque ambos, apesar de viverem juntos, já estavam separados, o que facilitou as investidas deste em relação à Dora. A garota o repeliu, o que, para ela — aqui apresento o meu modo de interpretar esse caso, que difere do de Freud — confirma o desejo inconsciente do pai de possuí-la como objeto sexual.

A questão do incesto, por ser uma condição humana que pôde ser estudada entre os nativos da Austrália, remonta à pré-história da humanidade, apesar de as censuras morais serem muito mais rígidas entre esses povos do que entre os ditos civilizados, que têm na religião o divisor fundamental que impede esses impulsos naturais de virem à tona. O primeiro sonho analisado por Freud apresenta a interpretação das investidas inconscientes do pai, que Dora inconscientemente percebera. No sonho, Dora é acordada pelo pai devido a uma casa que se encontra em chamas. A menina se veste depressa e diz que a mãe queria apanhar uma caixa. O pai diz que não quer morrer queimado junto com seus dois filhos por uma caixa de joias. O pai e as crianças correm para baixo e, quando estão fora da casa, a garota desperta².

A caixa de joias remete ao órgão sexual da mãe, mas esta é abandonada à sorte, dando preferência aos filhos, o que inclui Dora como objeto de seu desejo. O desdobramento do caso confirma essa percepção inconsciente de Dora quando o Sr. K. passa a confirmar o ato proibido do pai que disfarçadamente o sonho revela, intensificando sua ligação amorosa com este senhor, mas que se encontrava ainda inconsciente disso, devido à censura que a impedia de se conscientizar de suas inclinações em relação ao pai. A Sra. K. passa, segundo Freud, a ser um segundo alvo de suas investidas libidinais, mas agora impulsionadas pela inclinação homossexual que remonta à fase pré-genital, quando Dora ainda necessitava do alimento e do calor humano maternos, já que esta senhora estava concretamente se relacionando com o pai, fator que confirmava ainda mais os sintomas de Dora.

Quanto ao segundo sonho, este dá indícios de seus sentimentos de vingança em relação ao pai. A fachada onírica apresenta uma carta da mãe deixada em seu quarto, que revela a doença do pai e sua morte, seguidas da ausência da sensação de angústia. Até aqui, os elementos que compõem esse caso podem ser lidos de forma bastante explícita na primeira parte de “Niétotchka Niezvânova”, onde Dostoiévski pincela abertamente os anseios da menina fortemente fixada ao pai (esta não sabe que Iefimov é o seu padrasto), fantasiando, sem rodeios, seu desejo de que a mãe fosse abandonada, que o pai lhe desse uma piscadela como sinal, chamando-a para o corredor, e, sem que a mãe a visse, pegaria uma cartilha e outros objetos, e fugiria com o pai de casa para nunca mais voltar³.

Posteriormente, a relação homoerótica que estabelece com a menina Kátia, na segunda parte do romance, remonta à posição de Dora em relação à Sra. K., um retorno libidinal à figura materna que a prepararia para a terceira parte, onde forma a segunda triangulação, agora tendo como substitutos dos pais Aleksandra Mikháilovna e o severo marido, Piotr Aleksândrovitch, onde revive, como Dora, a luta de seus anseios inconscientes em relação à figura paterna, que são confirmadas pelo ciúme da esposa sobre as evidentes investidas sexuais do marido em relação à Niétotchka.

Como leitor, as minhas impressões sobre esta fase da vida da protagonista revelam uma moça determinada e que sabia, de certa forma, que sua presença naquele lar soava como uma provocação inconsciente, onde podia reviver a triangulação primária e realizar o desejo, mesmo sem o saber, de aguçar sexualmente as investidas daquele homem que trazia o fantasma de Iefimov para sua satisfação. O mesmo ocorre com Nelly, apesar de ser uma figura obscura, mas já exposta às obscenidades da prostituição e precocemente desenvolvida nas questões adultas, tendo Ivan como o salvador de sua má inocência.

Com Nastácia Fillípovna não poderia ter sido diferente. Uma recatada e inocente menina que acreditou estar sendo preparada como esposa de Totski; ao ouvir entre as criadas que este se casaria, passou a manifestar um lado, até então desconhecido, onde a frustração deu asas às mais extravagantes provocações para chamar a atenção daquele que a queria como a uma filha. Sua fuga para os braços do pervertido Rogójin encontrou sossego temporário quando encontrou em Míchkin o substituto de Totski como bode expiatório para suas vinganças, que se repetiram ao longo do romance “O Idiota”.

Essas “Ofélias” de Shakespeare, que Dostoiévski cita logo no início de “Os Irmãos Karamázov”, sofrem de uma má consciência, terrível aos olhos da sociedade, em relação a certos homens que as fascinam — que lembram o pai — e que fazem de tudo por esses homens, e até “morrem” por eles. Quando Freud conclui o caso interrompido de Dora afirmando que esta o tempo todo enganava a si própria sobre o seu amor pelo Sr. K., no fundo este serviria de um tapa-buracos para um impulso libidinal ofendido no curso natural da espécie humana.


  1. LESKOV, Nikolai. A propósito de A Sonata A Kreutzer. In: A Fraude e outras histórias. Tradução de Denise Sales. São Paulo: Editora 34, 2012. pp.168-169.


  1. FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria ("O Caso Dora") e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 246.


  1. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Niétotchka Niezvânova. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2002. pp.47-48.


 
 
 

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