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Psicologia Literária: uma introdução ao curso sobre Dostoiévski e o psiquismo.

  • Foto do escritor: alexandremorillas65
    alexandremorillas65
  • 2 de set.
  • 10 min de leitura

Atualizado: 3 de dez.

Análise psicológica das personagens em Dostoiévski.


O processo de análise da vida mental das personagens em Dostoiévski, visa a recuperação das características psíquicas apresentadas através da arte, dos fragmentos idiossincráticos de “pessoas reais” fundidas em personagens que carregam uma infinidade de impressões assimiladas, sentidas e pensadas pelo autor. Transportar da arte para a vida real os traços das personagens, revela o caminho inverso seguido pelo artista, uma desconstrução da obra de arte tornada viva, para a vida. Mas o que seria o real para o autor e para o leitor de romances? Essa é uma pergunta que jamais será respondida, porque as sensações humanas são únicas e intransmissíveis. Somente as relações tornam essas sensações ilusoriamente possíveis. A natureza humana não permite o acesso à consciência alheia e nenhum autor pôde, ou pode penetrá-la. O que realmente sentiam as personagens de Dostoiévski, e como o artista expressou a vida interior de cada uma delas, depende exclusivamente dessa impossibilidade. A transição já avançada entre o autêntico russo asiático e o russo neurótico (para Freud), pincelada por autores como Nikolai Karamzin, Alexandr Púchkin, Mikhail Lérmontov, e Nikolai Gógol, é fruto da influência do cristianismo ortodoxo que se fixou na Rússia, mais a ocidentalização provocada por Pedro, o Grande, fazendo surgir o intelectual russo e vidente que fez do romance de folhetim não só um retrato da sociedade e seus costumes, mas também um fotograma coletivo das profundezas da alma. Portanto, o autor se justifica na própria obra, se mistura aos diversos caracteres que a partir de sua perspectiva, procura transcender os limites do real, limites intransponíveis, encerrados na mente de cada leitor. A proposta aqui, demanda a descrição multivariada de sensações para a identificação contextual dos valores, ou seja, a expressão aproximada através do discurso. Freud reconheceu a dificuldade em trabalhar com sentimentos, por estar habituado a lidar apenas com descrições do ponto de vista científico. A Ciência tem suas próprias regras, mas não cabe a ela essa tarefa. Emoções raramente podem ser traduzidas em palavras quando lemos o romance, mas sentimos os seus efeitos, seja num turbilhão de lembranças evocadas, seja numa vaga reflexão que se descrita, pode tomar muito o nosso tempo. Os monólogos de Raskólnikov são dessa ordem. Descrever de forma imediata sensações produzidas pela lembrança que a sucessão de palavras escritas evoca, divisar a sensação da reação, não é uma tarefa fácil. Dizer coisas como “eu senti assim”, ou “a sensação foi desagradável, porque...” não esclarecem o suficiente. A cadeia associativa geralmente é acelerada pelos estímulos externos que nos distrai , e pela torrente de pensamentos misturados a sentimentos, numa sequência aparentemente caótica e velocidade incalculável. Sensações e semântica andam muito juntas, e a disposição sintática, pode trazer obstáculos até compreensíveis durante um diálogo, como no caso de um dos interlocutores não ter vivenciado ou se conscientizado de uma experiência narrada pelo autor. Gógol, através das peças "À saída do teatro depois da representação de uma nova comédia" e "Desenlace de O Inspetor Geral", procurou chamar a atenção do público para essa inconsciência da maioria das pessoas sobre as próprias reações emocionais e as alheias. As caricaturas expressas no palco pelas personagens foram percebidas inconscientemente por boa parte do público que deu todo tipo de justificativa, negando seu triste retrato; embora outros, pela falta de vivência, podem não ter percebido o que era esperado pelo autor .


O impasse do psicologismo mecanicista.


Na Rússia, o modelo de sociedade ocidental que já ensaiava o capitalismo que estava por vir, possibilitou ao artista , o olhar diferenciado para o corpo. As expressões corporais passaram a povoar a Literatura Russa na prosa de Karamzin. "Pobre Liza"  traz os  traços da análise caracterológica, esboçando de forma marcante as “caras” e “tons de voz” que o leitor imagina através da leitura.  A estrutura do romance russo a partir de karamzin,  apresenta  uma nova vertente de análise do caráter culminando no surgimento da Escola Natural e do Ensaio Fisiológico. O ensaio de Gógol  "Notas de Petersburgo de 1836", determina  essa estrutura que serviu de base para a produção de Dostoiévski, definindo Moscou e Petersburgo como dois indivíduos. O traço coletivo, ou seja, generalizado, passou a ser a marca da composição das personagens que mais tarde foram discutidas pela intelectualidade russa. Mas antes de considerar essa análise, é preciso esclarecer  o hiato que separa o aspecto coletivo do individual de um lado, e de outro, a questão da realidade e a análise subjetiva por parte do artista e do crítico. A possível inconsciência dos traços de caráter social por parte do crítico russo Vissarion Bielínski, quanto às mudanças de opinião sobre as primeiras obras de Dostoiévski, no caso, a novela  "O Duplo", e o conto "O Senhor Prokhártchin", que expressam com clareza  as marcas deixadas por Gógol e Hoffmann, pode ser compreendida  a partir da crítica levantada por Nietzsche sobre a ilusão* do artista e seus  exageros superficiais na composição do caráter, e também, do ponto de vista individual, a mudança de opinião do crítico geralmente pode estar associada a uma falta de percepção dos próprios sentimentos, o que impede o indivíduo de perceber as reações emocionais do próximo no sentido coletivo . Dostoiévski relatou a seu irmão Mikhail, a conversa-fiada  sobre "O Duplo", conversa onde a falta de flexibilidade entre os colegas de seu círculo, chamou sua atenção e o aborreceu.  Por mais que as observações feitas por Nietzsche sobre a criação caracterológica sejam incontestáveis, a dissecação da composição do moscovita e do petersburguês  criada por Gógol se faz necessária, para a compreensão das implicações que a análise da personagem dostoievskiana apresenta.  As expressões corporais revelam não aquilo que estamos pensando, mas o que estamos sentindo no momento. Quanto a Bielínski, o que sentiu quando concordou com uma opinião, ou impressão sobre os traços de caráter narrados pelo artista, pode estar relacionado aos inúmeros estímulos que aquelas passagens geraram, e que significaram apenas naquele momento. Portanto, sua inconsciência quanto a concordar e  discordar, está relacionada muito mais à questões internas, do que com o estímulo externo apresentado.  Os desentendimentos humanos a partir dessa observação são inevitáveis.  Como exemplo, temos a  crítica de Nikolai Tchernichévski em relação à arte, alegando que esta não poderia de maneira alguma, ser comparada à realidade. Tal precisão analítica do crítico também vem acompanhada de uma série de pensamentos e sensações que o levaram a concluir seu ponto de vista, mas não estranhou o porquê em defender ideias mecanicistas que ainda hoje, ignoram a realidade. O que realmente Bielínski e Tchernichévski sentiram quando opinaram algo, compromete todo o propósito das discussões de cunho social. Logo, tanto o artista quanto o crítico, encontram-se diante de um abismo.  No caso artístico, como o processo de criação na composição das reações humanas depende muito do estado de espírito momentâneo do autor,  é necessário aqui  separar sensação de reação.  Como não  conhecemos  os limites  entre esses dois fenômenos, o ideal é considerá-los separados, se quisermos como leitores, nos aproximar da essência da obra literária.  A reflexologia pavloviana  por exemplo, não levou em consideração  essa descontinuidade, fundindo psiquismo e atividade cerebral.  O sucesso de Pavlov na investigação da reação animal perante estímulos é apenas aparente. Ivan Pavlov  acreditava que as desordens “mentais” mediante estímulos, além de provocarem alterações nos grandes hemisférios cerebrais,  também eram marcadamente psíquicas, ignorando  as sensações que acompanhavam tais reações; no caso humano, podendo ser  muito variadas, conforme à polifonia de pensamentos, como bem observou Wilhelm Stekel.  Pavlov também  se viu em cheque quando a questão se encontrava dividida entre a Fisiologia e a Psicologia. Como justificativa, questionou  a segunda por não ser considerada uma  ciência exata . Ignorar a vida mental  considerando apenas as reações da matéria orgânica, revelou-se de uma ingenuidade cartesiana adotada muito antes de Pavlov, por Ivan Sechenov, fisiologista criticado com veemência por Dostoiévski. Para o escritor, as crises apresentadas tanto pelas personagens de Gógol, quanto pelas suas, tinham  funções psíquicas que iam além das explicações mecanicistas. A alma tinha um papel preponderante na razão de ser  do homem russo que a Ciência jamais adentraria. A psicologia compreendida por Dostoiévski também não toleraria as ulteriores explicações freudianas, creio, não pelo conteúdo, mas pela forma. 


* NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano : "Pessoas criadas", aforismo 160. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.


O determinismo psicológico.


Tanto Freud quanto Pavlov, apesar de rivais, adotaram pontos de vista parecidos para a investigação das reações humanas.  O mito da reflexologia em encontrar no cérebro as regiões que na verdade respondem às inúmeras sensações psicológicas que não interessam ao fisiologista, se encontra nas mesmas circunstâncias propostas por Freud, ao teorizar o esquema do aparelho psíquico, que serviu apenas para fins cientificamente descritivos.  Para Dostoiévski, explicações que se baseavam em noções que nada diziam da essência da alma, e reduzir o homem a um mero artefato mecânico, um pedal de órgão, lhe era inconcebível. A alma humana, substituída  por meros atos reflexos e mais tarde por explicações de possíveis causas definindo o  homem num  autômato ou  neurótico, e não em alguém, segundo Dostoiévski, que sofre por algo grandioso, não pode gerar grandes frutos. A sede por explicações culminou num emaranhado científico descritivo, onde os sentimentos humanos parecem não existir. 

A psicologia moderna também se preocupou em mapear através da psicofísica, a relação entre detecção de estímulos e reações físicas percebidas.  Ernst Weber, Gustav Fechner, Wilhelm Wundt e Emil Kraepelin, dedicaram-se ao tabelamento sensorial ( leia-se: reações), também ignorando o universo psíquico do indivíduo em prol da Ciência.  Vale repetir que psicologia humana para Dostoiévski , vai muito além das explicações mecânicas, que não lidam com descrições sensoriais genuínas. 


Dificuldades na transposição caracterológica da obra artística para a realidade .


Como descrever sensações? Como pode o leitor convencer outros leitores a respeito de suas sensações, se estes, caso estejam o vendo e ouvindo, percebem apenas seu exterior, ou seja, suas reações? Primeiramente, é preciso compreender que tal fenômeno, envolve a estrutura da linguagem - que é de ordem mental - , e está interligada a seu representante oral ou escrito, processado no sistema sensório-motor, e como o sentido emocional que é evocado nessa conexão, provoca a sensação que leva à reação. Estamos sob a influência de inúmeros estímulos externos em que apenas um deles ou mais, pode evocar uma cadeia associativa de pensamentos gerando sensações que são expressas em reações variadas. A dificuldade na observação das reações, pode ser encontrada na limitação preconcebida (cegueira) de nossas expressões emocionais que respondem aos valores do meio. Como as sensações são intransmissíveis, a descrição após a reação física pode ser enriquecida com as lembranças que a acompanham. Wundt procurou descartar esse tipo de descrição das vivências, por não confiar nas distorções da memória. Para o cientista, traços da realidade que enriquecem o diálogo e a compreensão não interessam, porque não cabem nos experimentos inventados em laboratório. São meros ruídos. O mundo do cientista, reduzido a um laboratório ou a constructos matemáticos, não compete com o mundo do artista que expressa a vida, mas também não podemos levar esta afirmação ao pé da letra.


Aspectos da ficção intransponíveis para o mundo real, e fragmentos de impressões biográficas sobre a sociedade.


No caso de Dostoiévski, sua criação passou por fusões idiossincráticas de personagens que se repetem, como é o caso do enxerto do sonho de Stavróguin em Viersílov, a forma mais gritante de duplicidade encontrada em sua obra, provocada pela censura do capítulo da confissão em "Os Demônios". A desconstrução da obra artística para fins de análise, também requer um olhar atento quanto à biografia dos traços de caráter da sociedade russa narrada por diferentes autores. A influência da narrativa de Gógol sobre os primeiros trabalhos de Dostoiévski é inegável, e até que ponto suas observações não estariam viciadas com as descrições do primeiro ao dramatizar a vida das personagens, deve ser levada em consideração pelo leitor, pois também neste caso, a repetição de caracteres, embora sutil, se faz notar, além das corriqueiras alusões a certas obras. Ao migrarmos de Dostoiévski para Tolstói, de Gógol para Gontcharóv, de Púchkin para Liérmontov, Karamzin, etc., estamos formando o quebra-cabeças da sociedade de diferentes períodos e de pontos de vista distintos. Dostoiévski chegou a declarar que o trabalho de Tolstói era o de um historiador, e não o de um romancista, alegando que a tranqüilidade e estabilidade da vida das personagens era uma exceção na Rússia, que a vida da maioria era confusa e caótica devido ao permanente movimento da ordem social que destruiu as tradições do passado. O caos do passado que reporta a Gógol, era vigente para Dostoiévski, o que pode-se “concluir” que tal movimento não afetou o jeito de ser do russo. Tolstói apresenta a serenidade na vida das personagens, e a resolução de Aleksiei Aleksándrovitch Kariênin sobre o destino de sua esposa Anna, e como lidou com o ciúmes, não apresentou nenhum traço de perturbação nos moldes de Gógol e Dostoiévski. A inquietação de Aleksiei narrada por Tolstói, apesar de magnífica, não chegou a desequilibrá-lo ao ponto de fazê-lo enlouquecer, pois a humilhação sofrida com o escândalo do adultério, tinha mais a ver com o olhar mundano de sua condição, do que com a perda do amor de sua esposa. Por outro lado, o olhar de Dostoiévski, em Pequenos quadros (durante uma viagem) – em especial, a análise que faz dos tripulantes nas embarcações - , o olhar de Golyadki para os funcionários da repartição pública, que gozavam de plena sanidade mental, e mesmo o de Vássia, parecem confirmar a ótica tolstoiana. Se essa sanidade era uma exceção, se confirma na obra de Dostoiévski. Como observador, Dostoiévski não poderia munir seus romances e contos apenas de loucos, o que não condiziria com a realidade retratada. Outro dado curioso é o encontro de Anna Kariênina com a princesa Betsy, da alta sociedade russa, que a convidou para um croqué com duas senhoras que pertenciam a um círculo social hostil ao que Anna freqüentava. Aqui também não se vê nenhum vestígio de perturbação psicológica por parte de Anna, ao contrário das personagens gogolianas e dostoievskianas que se humilham diante de pessoas que estejam em “melhores” condições sociais. É claro que esses dados não comprometem a estrutura do romance de Dostoiévski quanto à composição, mas até que ponto a loucura provocada pelo sentimento de inferioridade apresentou um problema de saúde pública na Rússia, especialmente em Moscou e Petersburgo, deve ser pesquisado nos diários do escritor, ou nos dados coletados pelos leitores , para que se constate a destruição das tradições do passado, pelo menos desde o período de Gógol, ou até mesmo antes. A tradição do passado justificada por Dostoiévski afeta diretamente o caráter da população, e o que chama a atenção não é o que se perdeu, mas o que não se ganhou com a tradição do período pré-gogoliano, se comparado ao do escritor. A chegada do capitalismo na Rússia no ano de 1861, aparentemente não foi motivo para alterações significativas na estrutura do caráter, se analisarmos os retratos de Liza, de Karamzin, e Sônia Marmieládova, ou de Akáki Akakievitch e Ieremias Smith, ou de Mínski, o viajante hussardo de o "Chefe da Estação" (Pushkin), e do príncipe Valkóvski, entre outros. Como a questão aqui se trata da autenticidade dos traços do caráter da população migrada para a obra de arte, e não da duplicidade - outra característica artística que implica essa análise - , é a marca deixada pelo autor que sofreu a influência da censura e de prazos, que afetaram diretamente o resultado de sua criação. Até que ponto podemos considerar a análise psicológica a partir de uma sequência de composições limadas, enxertadas, ou mesmo substituídas, depende muito do estado da narrativa. Assim, a análise do caráter - do ponto de vista artístico - , carece de elementos essenciais, mas ao mesmo tempo essenciais porque são expressões humanas. Um artista não pode conceber algo fora do mundo, mesmo que o pretendesse. Se toca o fundo da alma do leitor, é porque o essencial fora atingido. Portanto, para que possamos conhecer o leitor individual, não podemos descartar o traço de caráter identificado no meio em que vive, e claro, reconhecido por este através do retrato feito por artistas do passado.




 
 
 

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