top of page
Buscar

Dostoiévski e Nietzsche.

  • Foto do escritor: alexandremorillas65
    alexandremorillas65
  • 20 de set.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 4 de out.

A experiência mística sob a ótica de Freud.


Às vezes, uma experiência única na vida é o suficiente para não precisarmos das palavras para explicar o que sentimos com tamanho impacto a ponto de sofrermos modificações irreversíveis no plano psíquico. Relatos como esse apareceram tanto nas Sagradas Escrituras, quanto nas obras de ficção. O fenômeno, também conhecido como experiência mística, acomete pessoas pelo mundo. Não podemos precisar ao certo se muitas ou poucas passaram  pela provação. A passagem bíblica "porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos", não procede de fontes seguras, pelo fato de que tal experiência não é quase falada em lugar nenhum, e quem a teve, dificilmente consegue pôr em palavras, não porque estas lhe faltam, mas que pela obviedade de tal sentimento ofuscante e libertador, percebe logo que está sozinha num deserto. Ela teme falar em público sobre o assunto, por medo de ser ridicularizada e comprometer a sua reputação, a ponto de registrar o ocorrido de forma secreta e delegar a alguém que o revele póstumamente . Esse foi o caso de C.G.Jung, que autorizou a publicação de seu relato no livro "Memórias, Sonho, Reflexões". O psicólogo e um dos preferidos discípulos de Sigmund Freud, revelou sua dura passagem aos treze anos de idade, quando enfrentou um mau pensamento que lhe atormentava acerca de Deus. Com o rito de passagem, passou a sentir e compreender o mundo de uma nova maneira, um sentimento que nunca mais se apagou.  A essa chama que deixou de estar oculta, deu o nome de personalidade n°2 ou o seu "Zaratustra".  Na leitura das grandes obras literárias e filosóficas, esses redentores anônimos conseguem encontrar os seus espelhos e neles o conforto de saberem que não estão sozinhos. Zaratustra representa essa memória arcaica, desperta de tempos muito antes do surgimento das Tábuas da Lei, quando o homem ainda era deus, até o momento em que resolveu delegar a um pedaço de madeira, ou ao estrondo de um trovão esse deus que guardava dentro de si, e com isso, dar início ao que podemos chamar de civilização e com esta, encerrar nas profundezas de seu ser,  toda a sensibilidade que o fez livre, mas que agora o atirou num abismo para provar se é digno de reconquistá-la. Um desses que buscou de volta a chama sagrada, foi Friedrich Nietzsche. Este saiu do abismo, subiu a montanha e lá das alturas, quando despertou o sentimento oceânico dentro de si, sentimento que seu rival Sigmund Freud negou lá das profundezas da civilização, acabou por matar essa luz divina, e se autointitular a nova ordem do mundo. Fiódor Dostoiévski, que escalou o abismo um pouco antes de Nietzsche, resolveu se ajoelhar perante a luz desperta e se dedicar a Ela, mas não sem sofrimento. A epilepsia que o atormentou praticamente durante toda a vida permitia-lhe antes do ataque, reverenciar a grandeza divina retratada na crise de seu príncipe Mishkin, que apresenta uma das mais belas passagens descritas da experiência que prenunciava o aterrorizante episódio.

Mas no caso do filólogo alemão, a tentativa de renunciar ao Criador, acabou por comprometer o processo da redenção. É claro que a interpretação nesse caso específico é alegórica - por não sabermos nada a respeito do que realmente o levou à loucura -  mas não menos significativa do que a de Dostoiévski. Freud inferiu que o problema da experiência religiosa se encontra no complexo edípico. A figura paterna, além de se apresentar como alguém que está acima de suas forças e que é a única capaz de protegê-la, também representa o rival em relação à mãe. Os sentimentos ambivalentes da criança são produtos do desenvolvimento primordial humano, que remete o indivíduo às origens do totemismo, quando a horda primeva, tomada pela culpa, eliminou o pai e o elevou à figura sagrada. A imago paterna em Nietzsche pode ter sido representada de uma forma muito mais rígida através do superego, a ponto de provocar sua doença mental. No caso de Dostoiévski, as crises epilépticas atenuaram a culpa diante do pai, tornando o sintoma parte do processo de sua redenção, fazendo-o ficar numa eterna repetição da Paixão de Cristo. Quanto ao vício da roleta, vale ressaltar um trecho escolhido por Wilhelm Stekel sobre  Richard Wagner, que também sofria desse mal. O impulso de arriscar tudo na roleta, a mais perigosa aposta na qual se envolveu, Wagner afirmou:

 

"Senti como que uma iluminação e compreendi que era este o último dia que jogaria na minha vida. Minha sorte era tão extraordinária que os banqueiros resolveram fechar a casa antes da hora. Recuperei não só todo o dinheiro perdido até então, como também ganhei considerável quantia, suficiente para saldar as minhas dívidas. O calor que me foi invadindo mais e mais durante todo esse episódio era de natureza mística. Na virada da sorte, percebi que Deus ou o Anjo da Guarda estavam ao meu lado, advertindo-me e consolando-me.  Mais uma vez, cheguei  ao meu lar de madrugada; caí num sono profundo, do qual despertei fortalecido e como recém-nascido. Com essa ocorrência, a tentação perdeu todo seu poder sobre mim. O torvelinho em que vivia até esse momento se me afigurou subitamente o mais incompreensível e o menos atraente." ¹


Arriscar na roleta ou sofrer ataques, determina o que Freud apontou como sintomas que se assemelham à morte: " Você quis matar o pai, para se tornar o pai você mesmo. Agora é o pai, mas o pai morto." ²

Nietzsche e Dostoiévski concluíram o rito da redenção, mas o preço custou caro ao primeiro, que cometeu o mais hediondo dos crimes, pregando como um Deus morto, um super-homem para homens fadados a não nascerem para a nova ordem, enquanto o segundo nutria a esperança de que, com um pan-humanismo possivelmente iniciado no coração da Rússia, o Cristo voltaria a reinar sobre a Terra.


  1.  STEKEL, Wilhelm. Atos Impulsivos. Tradução de M. Matthieu. São Paulo: Mestre Jou, 1968. p.417.


  1. FREUD, Sigmund. Dostoiévski e o parricídio. In: Obras completas, volume 17: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p.350.



 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Amor e ódio na obra de Dostoiévski.

A ambivalência de sentimentos antes de Freud. A conturbada vida dos apaixonados saídos das páginas de Dostoiévski contém um rico material psicológico. O estilo realista do artista é o laboratório sobr

 
 
 

Comentários


Âncora 1
bottom of page