Dostoiévski: os sonhos em Crime e Castigo.
- alexandremorillas65

- 2 de out.
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Atualizado: 13 de out.
Um pequeno palpite sobre dois sonhos de Raskólnikov.
Esbarrando em pessoas pelas ruas, semiacordado; um agente da polícia aos berros próximo do quarto sufocante e o olhar do criminoso arregalado, o corpo em estado letárgico; os fiapos da barra da calça com microrrespingos de sangue; a velha usurária encharcada no chão e apenas silêncio; ora parado, suando frio, ouvindo a tristeza do realejo na rua empoeirada; caindo em sono profundo e, em seguida, chorando sobre a égua surrada... O que se passou no espírito de Dostoiévski quando escreveu o que pode ser considerado a sua Mona Lisa não dá para sequer suspeitar, ainda mais num período de sua vida considerado um dos mais conturbados e perturbadores, que retrata o segundo exílio de sua vida. Presa do vício no jogo, endividado, perambulando com a família pela Europa e onde, numa manhã, a troca de olhares entre ele e sua pequena Sofia, ainda um bebê de apenas três meses, o olhava fixo, para mais tarde o jogador compulsivo se inteirar de que a criança não estaria mais neste mundo, é um dentre muitos problemas que sua segunda esposa, Ana Grogoriévna, vinte e cinco anos mais nova que o marido e já de aspecto esmaecido, suportou com uma força descomunal, sendo fiel e paciente com um escritor que colocava tudo de si numa incerteza dilacerante. Talvez o motivo de “Crime e Castigo” ser um livro completamente diferente de todos dentre os que escreveu, que carrega em passagens a verve de Gógol no estilo, tenha sido o desespero de um homem atormentado por um misto de culpa desconhecida - confessada ao amigo Nikolai Strakhov - e absolvição de um crime redimido pelo Cristo, retratado na prostituta santa Sônia Marmieládova. Os elementos da composição que Dostoiévski carregou na memória aparecem registrados naquilo que viveu e podemos considerar a sua biografia, seus livros escritos. Não consegui encontrar, pelo menos chutando números, uns 95% da vida mental do escritor nos volumes escritos por Joseph Frank, que procurou desviar-se das questões psicológicas, o que muito tem de significativo na alma das personagens que Dostoiévski retratou. A psicanálise pode ser uma ferramenta útil para acompanharmos aspectos simbólicos e de desenvolvimento nesses retratos, mas Dostoiévski sozinho já é esclarecedor num nível muito acima, porque consegue pincelar sensações que impactam muito mais do que a ciência pode descrever. Dostoiévski nos puxa sem que percebamos, para nossas próprias características fisiológicas, quando lemos as passagens onde tanto Raskólnikov quanto outras personagens, transitam entre as duas zonas misteriosas da mente. Não percebemos quando pegamos no sono com as personagens e nos vemos lendo intensamente trechos oníricos até nos darmos conta de que se trata de um sonho. O ritmo com que Dostoiévski os descreve, envolve o psiquismo em níveis que o leitor desconhece, onde os conteúdos se misturam com os da ficção, que nos devolve impressões com as quais damos vida. O sonho provocado pelas impressões de horas anteriores, levou Raskónikov ao extremo do desespero quando o tenente da polícia adentra o prédio e, do lado de dentro do cubículo, ouve gritos e xingamentos insurgidos, seguidos de espancamentos contra a proprietária do edifício. É raro o leitor que não tenha se impressionado com tamanha barbárie, e o estado desesperador do protagonista que não conseguia se mover, paralisado diante de tal evento aterrorizante. A excitação interna, devido ao estado de nervos em que se encontrava, provocando a alucinação hipnagógica, surge como um, dentre vários sintomas somáticos provenientes de sua consciência culpada. Quanto ao sonho com a égua espancada, que já preparara seu espírito para o crime hediondo, Dostoiévski ressalta as características em certos tipos de manifestações oníricas, devido à proximidade com a vida em vigília que, mesmo possuindo os talentos de um Púchkin ou Turguêniev, o assassino da velha usurária não teria a capacidade de reproduzi-las artisticamente.
Apesar de esses sonhos apresentarem detalhes numa ordem linear, não diferem em estrutura daqueles que são absurdos e que ocultam o seu sentido. Isso remete ao que John Maynard Smith e Eörs Szathamáry opinaram a respeito da “gramaticalidade” do pensamento, defendendo o estudo de Alison Gopnik, sobre não existir defeito mental no que se refere à produção da linguagem, mas danos no tecido biológico¹.
Se o conjunto de características que compõe a natureza dos sonhos procede desse ponto de vista, alguma coisa relacionada às distorções, fragmentos ou detalhes realistas, envolve o comprometimento do organismo de alguma maneira. Essa observação é reveladora se reduzirmos ao tecido, o produto final dos defeitos da linguagem que reproduzem o sentido da neurose, mas inconcludente se levarmos em conta as barreiras que Noam Chomsky, Robert Berwick e Andrea Moro encontram sobre quais tipos de ligações existiriam entre a mente e os níveis celulares. Assim ficamos por ora com a explicação de Nastácia, a cozinheira e criada da senhoria que calada por alguns instantes, observando o febril criminoso, respondeu: “Isso é o sangue.”
MAYNARD SMITH, John; SZATHMÁRY, Eörs. Linguagem e vida. In: MURPHY, Michael P.; O'NEILL, Luke A. J. (Orgs.).O que é vida? 50 anos depois: especulações sobre o futuro da biologia. Tradução de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. São Paulo: Unesp, 1997. p.93.
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