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Raskólnikov e Stavróguin: a psicologia de massas na temática dostoievskiana.

  • Foto do escritor: alexandremorillas65
    alexandremorillas65
  • 4 de nov.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 9 de nov.


Dostoiévski e a consciência na psicologia da literatura russa.


As personagens centrais na obra de Dostoiévski trazem o arquétipo que molda praticamente o cerne das observações acerca dos problemas humanos tanto individuais quanto coletivos. Noam Chomsky disse acertadamente que os problemas humanos não são produtos da história, mas da natureza¹. Por sermos produtos biológicos dotados de livre-arbítrio e não resultados das regras sociais, a humanidade apresenta questões que jamais serão objetivadas, pois nenhum estudo sequer é capaz de penetrar os mistérios que a alma humana carrega e que destina a vida dos povos em saltos qualitativos inimagináveis. Tais revoluções obviamente, por serem produtos de ordem mental, acabam sendo adaptadas ao sistema social com o regimento político apropriado, o que mantém a massa populacional dentro dos limites que determinam a maneira de pensar e comportar da maioria. Além do curso natural que a humanidade segue, modificando paradigmas, há também os meios artificiais que procuram mudar estruturas que surgem sempre no meio político, os quais pregam contra o establishment e apontam o que consideram problemas que poderiam ser sanados, propondo uma nova ordem de acordo com suas ideologias.  A maneira artificial de procurar mudanças aparece na obra dostoievskiana em duas personagens emblemáticas que idealizam um mundo que poderia brotar diante de seus olhos, baseadas em seus anseios individuais, mas que rapidamente contagiam um número significativo de pessoas e tal conflagração repete o que o curso da história desde a antiguidade clássica revela: desentendimento e caos. E como toda tentativa de uma revolução forçada surge na alma de um indivíduo, quando este seduz um grupo que segue seus ideais, cada um dentro desse grupo seguindo sua própria lógica interna acaba provocando tumultos na esfera política e ganhando corpo através do uso da força. A forma como o indivíduo abandona suas próprias inclinações e maneiras de pensar e agir em função da massa, se dá pelo contágio mental que  neutraliza os freios morais provocando atos de toda ordem que desmentem  aquilo que Platão procurou romantizar nos “Diálogos”, como se num discurso, a razão de uma das partes fosse suficiente para inibir os impulsos inconscientes que governam o interlocutor tomado pela massa por uma ordem hipnótica, conforme as observações de Freud com base na tese de Gustave Le Bon².  O fenômeno do contágio mental se tornou peça chave para Crime e castigo, obra ímpar de Dostoiévski que trouxe a tese raskolnikoviana sobre o Direito ao Crime, tendo como base a consciência extraordinária de Napoleão Bonaparte, em contraste com a consciência ordinária do protagonista que se comparou a um piolho quando pôde sentir o peso da consciência momentos antes e após o derradeiro ato, contra uma força descomunal que o isolava daqueles que propunham um novo caminho para a humanidade. A dualidade ordinário-extraordinário só é possível sob tal efeito hipnótico da massa que amarra ambas às consciências numa relação de dependência mútua sadomasoquista. Somente uma única consciência extraordinária tem por mérito conduzir mil consciências ordinárias, se aquela se encontra mais forte do que as forças internas que governam a censura psíquica. Assim, o artifício de uma nova ordem vem fazendo do mundo um lugar estranho que aparta o indivíduo de si mesmo, um retrato prenunciado por H.G. Wells que ilustrou na primeira década do século XX, um cenário inevitável de guerra décadas mais tarde entre os anos 1939 e 1945³. Tal espírito já vinha borbulhando não só em Raskólnikov  - que representou a experiência da sociedade russa nos primeiros cinco anos do novo regime capitalista -  mas também numa personagem enigmática envolvida num plano de derrubada do poder czarista. Trata-se neste segundo caso, da personagem Nikolai Stavróguin de “Os Demônios”, obra que infelizmente veio a público em fragmentos e que fazia parte de um plano maior de Dostoiévski em cinco tomos que seria intitulado“ A vida de um grande pecador”, projeto faraônico que o faria concorrer com um rival (Lév Tolstói) à altura, que vinha ganhando notoriedade com calhamaços que fizeram história.  Apesar de fragmentada, a obra referida traz uma personagem que ilustra o capítulo censurado “Com Tíkhon” que quase da mesma maneira como Raskólnikov - no caso, este se viu forçado a falar sobre a sua tese lida por Porfíri -  por conta própria, Stavróguin tirou do bolso alguns panfletos e os colocou sobre a mesa diante de seu confessor. Neste panfleto, Nikolai Stavróguin representa um caráter psicológico que não revela características que o tornem um modelo exemplar para uma análise detalhada de um caso isolado de psicologia de massa, pois sua personalidade independe do fenômeno que acomete não só a ele, mas a todos que vivem em sociedade sob qualquer regime imposto. O que importa é que este panfleto carrega a essência universal da caracterologia de uma personagem inacabada num capítulo que não se encontra coeso com a trama do livro - que faz lembrar a falta cronológica entre as histórias que envolvem Pechorin em "O herói do nosso tempo" (Lérmontov) - onde os fragmentos de sua vida se resumem às de toda a galeria de personagens compostas pelo autor e que encerra o drama psíquico da humanidade. Seja Stavróguin, Niétotchka, Raskólnikov, Golyadkin, Neli, Nastáscia Filípovna ou Valkóvski, o indivíduo por mais que seja um sublime exemplo de ser humano, também pode, se seduzido pela massa, se tornar uma das mais abjetas figuras, capaz de qualquer ato. Gógol revela essa característica universal de forma divertida onde cada detalhe de uma personagem aparece em outra formando o mosaico humano onde a opinião própria se converte na de outro, mas com uma divisão piramidal separando sempre a maioria ordinária, da minoria extraordinária, mas nada diferente na essência entre ambas.


  1. CHOMSKY, Noam. A lingüística como uma ciência natural. Mana: Estudos de Antropologia Social, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, 1997. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/gHkP66Xgxsr95khMTJDJdSM/?lang=pt. Acesso em: 4 nov. 2025.


  1. FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 15: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp.21-22.


  1. WELLS, H.G. A guerra no ar. Tradução de Ana Brandão. - Jandira, SP: Principis, 2023.


 



 
 
 

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