Dostoiévski e Sófocles: duas personagens literárias sob o olhar da psicanálise.
- alexandremorillas65

- 30 de set.
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Atualizado: 3 de out.
O par de livros edípicos de Dostoiévski.
Encontrando-se numa situação delicada com a delação de um movimento conspiratório contra o czar Nicolau I, Dostoiévski, no ano de 1849, acabou encarcerado na Fortaleza de Pedro e Paulo, permanecendo ali por sete meses, antes de passar pelo ritual da falsa execução por fuzilamento e, em seguida, sendo destinado ao degredo na Sibéria por dez anos, onde passou quatro deles como detento, e cumpriu o resto da pena como soldado raso. Na Fortaleza, após um período, foi autorizado o acesso dos detentos a livros, e Dostoiévski pôde começar a escrever entre os meses de julho e dezembro, uma história que antecipa as investigações psicanalíticas acerca do Complexo de Édipo. O livro, “Um Pequeno Herói”, narra a trajetória de um garoto que aos onze anos de idade, desperta daquilo que Freud cunhou como a fase de latência da vida psicossexual, encontrando em uma jovem casada seu primeiro deslocamento amoroso que faz parte da resolução de uma estrutura que povoa boa parte das grandes obras literárias, como é o caso da peça de Sófocles “Édipo Rei”, que ilustra o fenômeno e leva o seu nome, assim como nas obras de Shakespeare, sendo esses os autores mais significativos e caros ao pai da psicanálise. A abordagem do tema por Dostoiévski revela as características do conflito edípico de uma forma muito mais limpa do que a narrativa científica freudiana é capaz de oferecer em termos de estilo, pelo fato de a literatura dispensar qualquer artifício do texto técnico que anuvia a simplicidade da natureza do desabrochar da criança para os primeiros sinais da vida adulta. Na história do garoto, o ritual se passa em cenário tranquilo, se comparado ao de outra personagem de um livro que Dostoiévski estava escrevendo antes de ser preso. Na história da menina que leva o nome do título, “Niétotchka Niezvânova”, o grau de maturidade de mulher ardente e ferina se revela numa narrativa extraordinária e num cenário miserável, onde vive com a mãe e um padrasto, sem saber que este não é o seu pai biológico. A maestria de Dostoiévski em desviar-se da censura da época permitiu-lhe desenvolver a intensa relação que Niétotchka mantinha com a mãe, desejando sua morte, e o “pai”, fantasiando que este abandonasse a esposa e fugisse com ela. Enquanto Dostoiévski suaviza a experiência de seu pequeno herói, sem nome, narrado na primeira pessoa, o que remete ao próprio escritor, no caso de Niétotchka, Dostoiévski revela os aspectos mais difíceis e significativos que tentou esconder de si mesmo. Em Niétotchka podemos ler o que se passa no imaginário de todo pequeno herói numa camada mais profunda. É sabido que na menina o complexo se intensifica mais tarde na vida, um pouco após a puberdade, quando o corpo se encontra em desenvolvimento, e amadurece muito mais cedo do que o dos meninos. Mas Dostoiévski, nesse caso, iluminou um elemento ainda na infância, que pode ser observado na fase edípica e que esclarece motivações da identificação da criança com o objeto do sexo oposto. Niétotchka, sem perceber, "identifica-se"com o pai como modelo ideal de homem e passa enamorar-se de Kátia, a filha de um casal que a acolheu após o seu padrasto abandoná-la sozinha na neve. São ricos os detalhes da troca afetiva entre as duas meninas que ainda não sabiam dos verdadeiros anseios que já se encontravam em ebulição, seguidos do sadismo de Kátia e seu desprezo em suas provocações, nas quais Niétotchka sofre as dores da desilusão amorosa de forma brutal, sentindo as mesmas dores que sentira ao ser abandonada pelo padrasto. Quanto à "identificação" com a figura paterna, percebe-se na veia artística de Dostoiévski, que este conhecia bem esses mecanismos e provavelmente escolheu como objeto de deslocamento, uma menina (Kátia) para esconder da imprensa o verdadeiro curso natural da sexualidade de Niétotchka. Por tratar-se de uma análise de obras de ficção, Dostoiévski delineou as características que Freud mais tarde enfrentou para poder em tese, chegar a um veredicto sobre os destinos do impulso sexual na inversão, que apresentaram um caráter inato e outro, adquirido, e que em nenhum dos casos se encontrasse uma explicação significativa. Niétotchka pelo que sabemos, não teve nenhum laço afetivo a não ser com os pais, o que "explicaria" o caráter inato da pulsão sexual dirigida ao pai como objeto de amor determinado. Mas o fato de Dostoiévski ter posto Kátia em seu destino, invalida tal hipótese, a menos que algo no caráter de Kátia, a altivez provavelmente, remetesse a algo masculino que a lembrasse da figura paterna. Assim, o rito de passagem de Niétotchka, tão conturbado, é o mesmo do pequeno herói que não pôde passar sem o desespero de não conseguir domar a beldade mais velha que passou por sua vida, que o manteve em situação vexatória, ele, um homem que não podia sentir-se desonrado e mais fraco do que ela, e ainda por cima, ser levado ao colo, sendo beliscado, tendo os dedos apertados, e ela em suas travessuras, rindo dele.
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