Dostoiévski e Bakhtin.
- alexandremorillas65

- 21 de set.
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Atualizado: 1 de dez.
Obstáculos à crítica literária e psicanalítica em Dostoiévski.
A dissecação psicológica da personagem romanesca requer uma atenção diferenciada da dirigida a um indivíduo na realidade. A prática da psicanálise é possibilitada pelo conjunto de valores e descrições sensoriais que definem dentro do contexto cultural, o sentimento em comum entre os indivíduos. Personagem e indivíduo apresentam características analíticas diversificadas, e o propósito deste ensaio é aproximar ao máximo a arte da realidade. A vida nos dá a todo instante uma noção sensorial de tempo, espaço e sentimentos, ao passo que a literatura fragmenta os dois primeiros, e assombrosamente amplia o terceiro. A descrição literal das sensações, favorece seu reconhecimento coletivo compondo o conjunto dos sentimentos dos indivíduos. O autor, da realidade, manipula em seu processo criador a temporalidade que afeta o espaço sensório do leitor deslocando-o da sensação temporal para a atemporal. O espaço-tempo na imaginação diverge do de sequências de palavras lidas que formam a imagem do recorte de mundo que é a representação interna e única em cada leitor. Partindo dessas noções, a representação de mundo assimilada através da leitura, devolve à realidade o sentido da obra de arte não como produto de ficção, mas algo vivo, uma existência interior. Tal existência se manifestando objetivamente através da relação entre as sensações de leitores num diálogo, visa como resultado o máximo de proximidade esperada. A existência no caso, apesar de individual, procura encontrar na existência interior de outro leitor, pontos de similaridade, que formam a ponte coletiva para esse arquétipo inalcançável que se manifesta apenas alegoricamente. O cubículo de Raskólnikov foi, e será para sempre variável entre pessoas e até na mesma pessoa. O modo de andar da personagem, as expressões faciais, tons de voz e posições corporais, mais os detalhes periféricos capturados pela sensação da “visão periférica interior” do leitor, podem renovar interminavelmente o recorte de mundo imaginado que não é o das representações geométricas. Mas como essa relação entre leitores se daria na crítica literária? Até que ponto o crítico permitiria uma proximidade de entendimento da obra com seu interlocutor? Qual a função e objetivo do crítico? O que espera da relação estabelecida com o próximo, ou melhor, se se dirige a este esperando uma relação? Os distintos pontos de vista que aparecem nas críticas acabam se tornando imposições que definem o que “deveria ser” o produto de um autor. A partir do momento em que o leitor toma para si uma imposição, deixa de perseguir as próprias impressões que a obra gera em seu espírito conscientemente, impressões que o possibilitam formar um juízo de valor. Além desse juízo, as impressões inconscientes fixadas, foram e continuam sendo negligenciadas pela crítica que se atém mais aos aspectos culturais, sociais, artísticos e filosóficos. Apesar de importantes como elementos de composição, os aspectos que prendem o leitor à trama, o sentido que a obra gera, acabam sendo obscurecidos por direcionamentos de cunho subjetivo de outros leitores. E mesmo os aspectos psicológicos da vida do escritor exemplificados por Freud em "Dostoiévski e o Parricídio", devem ser contrastados com as impressões do leitor para que este expresse seu próprio juízo, resultante de suas sensações. O Freud leitor de Dostoiévski não teve acesso direto ao autor, e mesmo se o tivesse conhecido, não poderia acrescentar mais detalhes em sua análise, sem que colocasse muito de si nas suas impressões. Por outro lado, a disparidade de juízos proferida por aquele que o conheceu de perto, no caso, Vissárion Bielínski, em relação ao desmerecido "O Duplo"
pode, para uns, apresentar vantagens quanto à diversidade de ângulos na avaliação de um tema, como que para outros distorção e falta de tato àquilo que se observa, assimila e expressa . O emprego da razão nesse caso, parece não favorecer o crítico que conta com seus sentidos na hora de apresentar objetivamente seus argumentos. Sabe-se que toda crítica é fechada, mas alterada conforme as sensações interpretam novas leituras do mesmo objeto. Encontramos esse fenômeno no campo das traduções diretas de obras russas feitas no Brasil, onde um ponto de vista crítico passa a determinar a maneira como o tradutor lida com o sentido da palavra ou expressão no original. A sensação da palavra lida pelo tradutor não pode ser a mesma quando lida posteriormente. O sentido da palavra já não é o mesmo. Nesse caso, como fica o leitor de traduções? O que realmente estaria lendo? Em que sentido entende as palavras traduzidas, aquelas escolhidas pelo tradutor em determinado momento? Qual a real importância para o leitor de traduções se esta ou aquela palavra foi empregada pelo tradutor, ou se a expressão na tradução indireta foi polida na direta francesa, espanhola, inglesa ou italiana ? De que sentido o tradutor do russo estaria exatamente falando, quando traduz uma obra, ou quando invalida o sentido de uma palavra ou expressão numa tradução indireta? Será que o autor russo realmente atinge seu objetivo com a ajuda desse mediador, fazendo com que o sentido aproximado da palavra ou frase chegue com segurança à consciência do leitor? Estaremos nos deparando com mais um obstáculo à análise caracterológica da personagem? Sabe-se que grande parte dos tradutores do russo no Brasil, seguem as teses sobre a filosofia da linguagem atribuídas ao pensador soviético Mikhail Bakhtin, relacionadas à questão da polifonia das vozes e do dialogismo, abordada em "Problemas da poética de Dostoiévski". Mas até que ponto as traduções influenciadas por esta filosofia, sintetizam o juízo que cada um de nós leitores, fazemos da personagem dostoievskiana?
As questões acima precisam ser muito bem avaliadas antes de um veredicto, pois o leitor é quem expressa o verdadeiro sentido da obra, nunca o crítico, o tradutor, e muito menos o autor. Antes, duas coisas precisam ser esclarecidas para analisar esse confronto de sentidos por trás da escrita. A primeira, é a afirmação de Bakhtin" em "Problemas da Poética de Dostoiévski" referente à personagem inacabada, considerada não como um ser dotado de corpo, mas como um discurso inconclusivo, uma voz sem corpo. A segunda, a que defendo, é o corpo do leitor que se funde ao corpo da personagem imaginada e se move com ela. Bakhtin parte do princípio de que a personagem, em especial a de Dostoiévski, é uma voz, um discurso. Como o leitor concebe a ideia de uma voz sem um corpo? A mente produz imagens conforme a leitura ocorre e não acredito que pessoas dotadas de tato, visão e audição, concebam na imaginação apenas vozes. Justificar a voz exclusivamente como produto artístico também apresenta problemas, se o leitor não está familiarizado com a filosofia bakhtiniana. Essa temática envolve o estudo de um fenômeno psíquico que é a da fala interior. Em nenhum momento Bakhtin esclarece esse fenômeno do ponto de vista psicológico, mesmo quando faz referência ao conteúdo semântico da personagem quando envolvido no monólogo interior, que é rico em conceitos e em tons variados da ordem que implicam os cinco sentidos. Quanto à variação do sentido de um conceito, podemos analisar em duas obras bakhtinianas o emprego do termo "objetividade" e as respectivas intenções do "autor". Em "Problemas da Poética de Dostoiévski" , a psicologia é combatida em defesa de um Dostoiévski que nega ser um psicólogo, e também pelo fato desta tese estar alicerçada na filosofia marxista, negando qualquer definição científica do ser.
A consciência da personagem é a que se confronta com outra consciência, e assim sucessivamente, limando a “conclusibilidade”. O Bakhtin que é apresentado ao público brasileiro é o que se atém à problemática da poética; mas para que a concepção bakhtiniana sobre o psiquismo seja compreendida, se faz necessário esclarecer algumas questões sobre a autoria das obras que levam o seu nome. A biografia de Mikhail Bakhtin escrita por Katerina Clark e Michael Holquist, apresenta um capítulo intitulado Os Textos Disputados, onde a autoria bakhtiniana aparece comprometida com as de Valentín Volóchinov e de Pável Medvedev. Quem realmente teria escrito os livros atribuídos a Bakhtin, ainda é um grande mistério. Especificamente, "Problemas da poética de Dostoiévski", e "O Freudismo", apresentam não apenas estilos completamente diferentes - que podem ser avaliados pelo leitor através das traduções feitas por Paulo Bezerra - mas contradições quanto às noções epistemológicas sobre a questão psicológica. Apesar de "Problemas da poética de Dostoiévski" ter sido publicado em 1929 a obra foi produzida entre 1920 e 1922 e apresenta um Bakhtin que domina os limites das crenças científicas nos moldes de um Paul Feyerabend ou Thomas Kuhn; ao contrário do Bakhtin de "O Freudismo", publicado em 1927 e que segundo os biógrafos, o autor teria começado seus estudos sobre Freud no ano de 1924. Para o estudioso da filosofia da ciência, não é difícil discernir as noções acerca da objetividade científica apresentadas nessas obras. Cronologicamente, o Bakhtin de 1920-22 deixa subentendido que a objetividade científica opera apenas no campo teórico, refutando assim qualquer análise psicológica que defina a personagem dostoievskiana. Pegando carona no Dostoiévski crítico do mecanicismo científico, Bakhtin procura combater a coisificação da alma como um crítico da ciência. Já o Bakhtin de 1924-27 apresenta um retrocesso a essa noção. A coisificação passa a ser defendida contra um biologismo freudiano que opera através do psiquismo, um mundo interior que segue na contramão da objetividade “científica” defendida com unhas e dentes. Mas tal defesa é justificativa para sustentar aquilo que o Bakhtin de 1920-22 sustentou em sua tese sobre Dostoiévski: a consciência objetiva no sentido proposto por Karl Marx, aquela que de fora é transformada por outras consciências através do materialismo histórico, ou seja, as que criaram os meios de produção e que determinam o indivíduo, e não que este seja guiado por questões de ordem psíquica, subjetiva. O Bakhtin de 1924-27 procurou livrar o organismo biológico de qualquer resquício de subjetividade no sentido freudiano através de uma crítica vaga acerca da psicanálise, relacionada às questões das instâncias psíquicas que compõem o modelo do aparelho psíquico (segunda tópica). No caso, a formação do psiquismo como uma reação ao meio não interessava ao autor, não porque a objetividade científica defendida por Freud em sua teoria não tivesse relevância, mas pelo simples fato de o autor negá-la com o sentido sociológico da objetividade pregado pelo marxismo que ele usou para justificar a científica, defendendo que a consciência é transformada por outras consciências. Assim fica nítida a intenção do autor em abraçar de forma exagerada as escolas de psicologia objetivas, e até mesmo o behaviorismo americano, contra um freudismo que ameaçava as estruturas do regime instaurado na Rússia.
A questão artística também é tratada nos moldes que visam a ideologia marxista, e não a arte como processo criador, livre. Dostoiévski através de cartas ao irmão Mikhail, narrou seus momentos de crise criativa que o levavam ao desespero. A criatividade é um fenômeno que não pode ser enquadrado em nenhum tipo de análise crítica com a finalidade de revelar os caminhos que um autor traça, antes de compor suas obras. Ninguém sabe o que realmente vai escrever. A obra simplesmente vai se materializando conforme a inspiração do momento, e desenvolver uma tese que explique o que o autor estaria revelando na estrutura de suas criações nada mais seria senão atribuir ao autor sua maneira particular de sentir a obra, ou, no caso de Bakhtin, a ideologia que ele adotara para satisfazer seus próprios anseios.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
BAKHTIN, Mikhail. O freudismo: um esboço crítico. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2001.
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2008.
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