Dostoiévski e Heisenberg: o rastro de um incerto brincalhão quântico.
- alexandremorillas65

- 14 de nov.
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Atualizado: 30 de nov.
Problemas epistemológicos satirizados por Dostoiévski.
A crítica russa, desde o seu auge no século XIX, presenteou a humanidade com temas que ocupariam as grandes mentes por todo o século seguinte e, ainda hoje, os questionamentos e teorias, por mais que tenham revolucionado e proporcionado avanços significativos, continuam em aberto, seguindo as escolas epistemológicas que procuraram ser as camisas de força da certeza provisória. Tal encurtamento ou retrocesso no sentido de avaliar os fenômenos da vida foi pincelado por Dostoiévski na tentativa de certos curiosos em explicar a misteriosa aparição da figura de uma criatura mitológica, um diabinho de barba, cabelos e dentes verdes, que surgiu um belo dia nadando num lago e, visto por um grupo de pessoas da alta sociedade, passou a brincar de maneira indecente e, gritando palavras ofensivas, aproveitou sua posição e momento para fazer um gesto obsceno e mostrar a língua, para em seguida mergulhar e deixar alguns círculos na água, rastros de sua presença neste mundo. Apenas as mulheres, que correram para a borda do lago jogando doces e oferecendo bombons, juravam se tratar realmente de um tritão. O que foi um verdadeiro e acalorado problema de suposições acerca de certas personalidades pregando uma peça e, a cada suposição, as hipóteses caíam uma a uma por terra. Mas coube a um humorista que estava presente no local e a uma celebridade das letras inventarem mais conjecturas para que, finalmente, o episódio inusitado fosse por um tempo esquecido. Tal problema matemático e filosófico, que ocupou a mente dos físicos modernos a partir dos anos 1920, para Dostoiévski, quase meio século antes, foi uma divertida e irônica crônica dirigida aos cientistas, principalmente a Ivan Sétchenov e Dmitri Mendeleiev, que tudo procuravam por uma resposta mecânica para os fenômenos da vida. Se Albert Einstein disse que Dostoiévski lhe deu muito mais do que qualquer cientista, muito mais do que o matemático Carl Friedrich Gauss, deve ser porque a simplicidade das coisas da vida não merece ser molestada com cálculos ou medidas que nada dizem respeito ao mundo ininteligível. Mas é claro que a capacidade questionadora dos seres humanos não pode ser menosprezada, já que a ciência é fruto do pensamento filosófico que, por alguma razão, a natureza dotou a consciência de certos atributos inatos para dar sentido à sua existência. Se a mente humana é um mau projeto, como Noam Chomsky propõe questionar em seu Programa Minimalista, isso parece não ter relevância sobre a reflexão e a crítica que, mesmo antagônicas algumas vezes, são produtos da linguagem, e esta é a que faz, certo ou errado, o homem evoluir. Quando Werner Heisenberg arrancou dos materialistas a certeza da partícula como um objeto físico localizável, apenas cumpriu o dever de provocar a humanidade, mudar a direção do paradigma para o desconhecido — o que podemos perceber na corrida para a bioquímica —, um efeito colateral da insuportável sensação de certos físicos de não terem o que fazer com as mãos vazias. E Dostoiévski, em pouquíssimas páginas, descreve o alvoroço em torno das testemunhas que viram o fantástico ser fazendo travessuras, sumindo e emergindo na água, mas cujo testemunho não foi suficiente porque as grandes autoridades em fenomenologia, por não terem presenciado a tal partícula desavergonhada, mas apenas analisado com olhares técnicos aqueles círculos deixados na superfície, concluíram que estavam lidando com algo extraordinário e que a observação pura e simples não era confiável “para os homens, é claro¹”, e estes passaram a repetir aquilo que Parmênides já havia feito há cerca de 25 séculos, mas filosoficamente: reinventar a roda da inteligibilidade enquanto a natureza, representada naquele demônio que nunca mais deu as caras, pregou mais uma vez à humanidade uma peça para que esta, provavelmente, possa evoluir e promover uma realidade paralela para que as necessidades humanas sejam supridas e deixem de lado as coisas de Deus ou do Diabo, para que permaneçam inacessíveis e estimulem a consciência a sempre duvidar e questionar ad infinitum.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O tritão. In: BIANCHI, Fátima (org.). Contos reunidos. Tradução de Priscila Marques et al. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 433.
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