Descartes e Freud: ideal e real.
- alexandremorillas65

- 10 de set.
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Atualizado: 25 de set.
Todo neurótico é cartesiano sem saber.
Quando nos encontramos em crise, estamos envoltos em um mundo imaginário que parece muito maior do que este que habitamos. De onde tiramos a certeza das coisas que se projetam em nossa mente em cadeias associativas pode ser respondido de acordo com os desvios de um modelo de realidade imposto por alguma autoridade. Tal modelo, um deles, é o proposto por René Descartes. Os pensamentos nos quais o filósofo francês se debruçou longamente se estendem ao psicanalista, psicólogo, físico teórico, filósofo, biólogo ou quem quer que seja, que se pegue questionando o mundo e suas complicações, que, de alguma maneira precisam de esclarecimentos teóricos para manter as coisas equilibradas. É fundamental a compreensão de que o processo dialógico no setting terapêutico, envolva duas consciências que se confrontam, dois mundos distintos que não se tocam, para possibilitar através do discurso as experiências subjetivas. Logo, a sintaxe, através da articulação de sons ou de cadeias de palavras escritas, projeta para fora da consciência os pensamentos com sentidos extremamente variados, absorvidos por outras consciências que deformam a seu modo os recebidos, gerando outros e assim sucessivamente numa comunidade que acaba em eterno desentendimento. Mas o que ouvimos da boca do outro, seja o terapeuta ou o paciente, geralmente é coerência pré-fabricada, estática; uma cadeia de sons articulados ou sequências de palavras escritas, trazendo em sua bagagem, um sistema mecânico que compila desde os pré-socráticos até Newton e Descartes, aquilo que rege nosso modo de pensar, nos mantendo presos num ciclo vicioso. Então, tudo o que é pensado, as conquistas que provocaram revoluções no decorrer dos séculos, teriam raiz em uma cadeia cíclica com base num imperativo mecanicista. O caos de ideias confusas não se reporta apenas a processos inconscientes relacionados aos instintos, mas na maneira como o Ego no sentido freudiano está configurado, quando interpreta a cultura, e não o que esta significa em si . É claro que grande parte do que diz respeito a essa instância do aparelho psíquico é resultado da repressão dos conteúdos proibidos no desenvolvimento até os cinco anos de vida em média, mas a outra parcela do processo educacional, paralelamente a essa fase, foi direcionada para fins mecânicos que de certa maneira encontrou espaço na consciência, provavelmente com o processo de aquisição da linguagem, no sentido proposto por Chomsky no Programa Minimalista, moldando também a forma de sentir e pensar o mundo. Descartes parece ter contribuído com a obstrução do olhar para fora - um olhar para o mundo ininteligível, imediato aos nossos sentidos, e como Parmênides, repisou na tecla do idealismo para reforçar um mundo introvertido, e assim, fazendo predominar o racionalismo.
A neurose e a idealização do real.
Como o próprio filósofo francês prega, o realismo não cabe no mundo dos pensamentos. O outro mundo fora de nós, se tornou um ideal inalcançável. Não fomos educados para direcionar nossos conflitos interiores para um realismo mundano, porque não temos a menor ideia de como é esse mundo, ou se realmente ele existe. O cientista cognitivo Jerry Fodor propôs um sistema de crenças. O mundo que vejo é a partir de dentro. Os estímulos que recebo advindos de fora, são interpretados de acordo com os processamentos internos que validam os objetos e situações do meio, gerando uma forma de ver e sentir esse mundo de uma perspectiva única. Assim, interpreto o que passa pelos sentidos, e lido de forma ideal com as coisas, após meu sistema de crenças interpretar o que reconheço como verdadeiro ou falso. Essas questões filosóficas valem para entendermos que a psicanálise também lida com questões que deformam a realidade a partir do Ego. Este, além de trazer conteúdos que simbolizem o que está reprimido, estes também se tornam elementos distorcidos, resultado final de uma realidade supraconsciente, que encerrou nosso modo consciente de entender o mundo, preso a uma redoma. Foi esta a prova que Descartes encontrou da existência de Deus. Se existe algo fora do pensamento, foi pelo fato de podermos formar no próprio pensamento a ideia de que Ele exista, não que exista de fato, mas a formulação no próprio âmago do pensamento seria a pista, uma evidência de que exista algo fora. Isso seria o Real proposto por Lacan, mas esse algo seria o significado não alcançado internamente, e o ideal de todo cientista na busca da unidade das coisas, estaria sendo procurado do lado de fora, o que nos remete a uma busca incessante por Deus no céu, e não dentro de nós mesmos, fazendo com que o drama de Sísifo que Descartes acometeu os ocidentais, jamais cesse.
Teoria e Realidade.
Com a herança mecanicista povoando o imaginário coletivo, o cientista não tem outra alternativa senão recorrer a experimentos artificiais. Esses experimentos feitos em laboratório requerem cálculos complexos para idealizar modelos que comprovem suposições, ou como afirmou Richard Feynman, “palpites”, sobre objetos reais. Como o mundo é ininteligível, e não podemos imaginá-lo fora do idealismo, é comum encontrarmos querelas entre comunidades científicas e diletantes, sobre o que “realmente” tem valor científico. A psicanálise é um dos grandes alvos desses grupos que não reconhecem a prática freudiana como científica. Esses embates acabam não tendo o menor sentido, porque Freud recorreu a modelos científicos de forma rigorosa, para poder analisar os casos e transpor para o tecnicismo, um modelo de aparelho mental que pudesse explicar as relações entre as instâncias psíquicas e como estas definem a conduta humana frente às questões de ordem inconsciente. Freud tinha o indivíduo isolado como objeto de estudo, e seu consultório, como o laboratório para seus experimentos. Tais implicâncias desses grupos envolvem o idealismo como sequela pela impossibilidade realista de saber o que há fora do pensamento. A psicanálise pode avaliar essa questão dos dois ângulos apresentados acima ao qual o Ego é submetido, ou seja, das pressões internas ligadas ao desenvolvimento, e de fora, pelo modelo idealista que impõe uma ilusão acerca do mundo que ninguém pode conhecer. Da mesma maneira que os habitantes de um país* perdido nos Andes, descrito por H.G.Wells, não tinham consciência de que eram cegos, assim como os conteúdos do ID não têm consciência do que entendemos ser a parte consciente do Ego, esta também está cega por sofrer a repressão de forças misteriosas externas, que impedem a completa conscientização do real.
* Wells, H.G. O país dos cegos e outras histórias . Tradução de Braulio Tavares. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
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